Joe Gillis, um roteirista de filmes “B”, possui um probleminha que qualquer ser humano uma vez na vida já teve. Uma dívida. Ele necessita de 290 dólares. Este é seu desejo. Mas após fugir de alguns cobradores do banco e ter o pneu do seu carro furado, por obra do acaso, conhece a desajustada e solitária Norma, atriz do cinema mudo que sonha em voltar às telas do cinema e que detesta o cinema sonoro, suas falas constantes e intrépidas. Ela será tanto aliada e inimiga de Joe. E Joe será o passaporte que levará Norma de volta às câmeras e ao estrelato. Mas, para isto, ela vai ter que matá-lo.
A história, antes de
se tornar filme, já está presente na mente do cineasta, que já conhece o
destino dos personagens, todos os dramas psicológicos e a importância narrativa
dos elementos cênicos. O diretor pode - no intuito de causar suspense, drama,
comédia, ou qualquer outra emoção no espectador - guardar ou mesmo liberar precocemente
tais informações ao longo do filme. Crepúsculo dos Deuses, do prolífico e
oscarizado diretor Billy Wilder, surpreende ao apresentar diversas informações
importantes da história - como a morte do nosso protagonista – já nos primeiros
minutos da película por meio de um narrador. Joseph irá ser baleado; serão dois
tiros, um atravessará suas costas; outro, sua barriga. Ele ainda terá a “sorte”
de cair numa piscina. A piscina que sempre desejou. Esta é uma escolha
narrativa arriscada que entrega certas reviravoltas importantes do filme, mas, veremos,
mais adiante, que foi mais do que apropriada, porque os personagens são mais
interessantes do que um simples mistério acerca de um crime, uma história já
tantas vezes vista no cinema clássico hollywoodiano.
Em uma narrativa
clássica hollywoodiana, geralmente, o fim da trama e o destino final do
protagonista são apenas apresentados pelo filme em seu final. É a escolha mais ortodoxa,
que pode garantir boas reviravoltas, surpresas e um clima de suspense
extraordinário, como em “O Sexto Sentido”, de M. Night Shyamalan – que, em seu
final, por meio de um flashback, descobrimos que o personagem interpretado por
Bruce Wyllis é - e sempre foi - ao longo do filme, na verdade, um espírito. Aqui
em Crepúsculo dos Deuses, contudo, a já citada morte do protagonista é um
flashforward explícito que quebra a cadeia causa-efeito tradicional e
cronológica da narrativa clássica hollywoodiana. Com isto, a narrativa torna-se
ainda mais intrincada e, ao usar um narrador já falecido, enaltece e engrandece
as falas dos personagens, que poderiam ser entendidas como comuns ou
enfadonhas, caso não fossem palavras vindas de um morto. Portanto, a morte de
Joseph (nosso “herói”), além de engrandecer suas observações sobre qualquer
elemento cênico da mansão de Norma Desmond, também valoram as ações de todos os
outros em cena, que se tornam igualmente suspeitos e trágicos. Uma simples
piscina, por exemplo, que é vista como um dos desejos de nosso protagonista,
para nós, é uma preocupação constante, porque sabemos que função narrativa ela
terá no futuro.
A respeito do
assassinato: embora saibamos como Joseph C. Gillis morre, não temos ideia de
quem o matou ou por quê. Há apenas a sugestão de que Norma esteja envolvida. Esta
sugestão provoca suspense e mistério ao restringir nosso conhecimento acerca de
certos dados eminentes (quem matou e por que matou), e, mais, a figura de Norma
torna-se mais perigosa e misteriosa. Uma arma nunca é sugerida no primeiro ou
segundo ato, este um é outro artifício narrativo necessário, para que nós nos
surpreendamos com a presença desta no final do terceiro ato. O filme também
utilizará artifícios cinematográficos importantes para construir estes
personagens ambíguos, dramáticos e misteriosos. Por já terem conhecimento
prévio sobre os traços dos personagens e os caminhos da narrativa, a direção de
arte e certas ferramentas da mise-en-scène, como a iluminação, a direção de
atores, a direção de arte, podem provocar, a partir daí, nossas emoções, atiçar
nossas curiosidades, causar suspense. Embora, mais pontualmente, os movimentos
de câmera auxiliem nesta passagem de sentimentos.
No começo da
película, por exemplo, a direção é vívida e percorre, por meio de um longo
plano-sequência, a rua (Sunset Boulevard) que dá nome ao filme. Com muita
movimentação de câmera, este estilo fílmico contrasta com o restante da
película, que se baseia mais na mise-en-scène e em composições com moldura (fig.1a)
do que em movimentos de câmera suntuosos. O trabalho da direção de arte no
cenário; da mise-en-scène na encenação e posicionamento das figuras
(personagens ou não) na cena; da iluminação no tratamento das sombras, é
fundamental para elevar esta atmosfera de mistério que permeia toda a narrativa.
A primeira consegue transformar uma amplíssima casa em um espaço claustrofóbico
e aterrorizante (fig.1b). Claustrofóbico, porque mesmo que Norma Desmond não
esteja em cena, sua presença é constante em fotos e quadros, que confinam o
personagem Joseph ao ambiente. Do estado deplorável da garagem – com paredes
descascadas e portas sujas - à piscina, vazia e tomada por ratos; da quadra de tênis,
com sua rede danificada e podre, aos galhos que de tão crescidos além do normal
estão empinados, todos estes elementos cenográficos refletem o isolamento de
Norma e sua incapacidade de cuidar do ambiente, ou seja: de viver fora do
estrelato e das câmeras.
Fig. 1a
Fig. 1b
Quanto à mise-en-scène
na encenação dos atores, a postura de Norma sentada (fig.1c), quando esta
entrega o roteiro de Salomé para Joseph, remete ao expressionismo alemão e ao
animalesco. Tanto sua mão, como também, em outro momento do filme, a do mordomo
(fig.2), são análogas as de um monstro e assemelham-se aos galhos empinados que
proliferam na externas da casa. A maquiagem igualmente casa-se a estes
componentes ao embaraçar e ondular os cabelos (fig.3) de Norma. Porém, ainda
estamos falando de personagens, mas os objetos também são movidos pela equipe
do filme e aqui as estremecidas cortinas (fig.3a) sugerem um clima de mistério
já no início da película, as águas balançantes da piscina (fig.3b) refletem a
dramaticidade da cena na hora do assassinato. Existem outros momentos sutis
como estes ao longo do filme.
(Fig. 1c)
(Fig. 2)
(Fig.3)
(fig.3a)
(fig. 3b)
Para lapidar essa
aura misteriosa em torno da personagem, no primeiro diálogo entre John e
Norman, Billy Wilder usa uma composição com moldura (fig.4), que induz nossos
olhos a percorrer a tela em busca de informação, neste caso, a silhueta da
misteriosa Norma que está no centro do quadro. Além disto, a mise-en-scène tem
um papel fundamental neste primeiro encontro ao criar um distanciamento entre
os dois personagens: ele está no térreo junto à piscina; ela no primeiro andar
da casa. Esta separação vai ser quebrada aos poucos, os personagens vão cada
vez mais se unirem no espaço, culminando numa cena de dança, (fig.5) que indica
um principio de amizade entre os dois que vai ser importante no decorrer da
trama quando Joseph correr desesperadamente para cuidar de Norma.
(Fig.4)
(Fig.5)
Existe uma
interessante alteração de planos durante todo o filme. O mordomo, na maioria
das vezes, estará posicionado no segundo plano (mais profundo no campo) (fig.
6), num meio termo, estará Joseph, e Norma em primeiro plano. É uma alteração mutável
que por propósitos dramáticos pode variar. No terceiro ato do filme, no qual
Joseph descobre que Norma quer separá-lo de Betty, ele decide finalmente tomar
controle da situação e isto é dramatizado e expressado pelo diretor com uma
sutil alteração de planos (fig. 7). Vale lembrar que, comumente, objetos
colocados em primeiro plano transmitem uma ideia de poder e subordinam os
demais elementos. Percebemos assim porque se estabeleceu no áudio visual e também
na milenar arte pictórica. Esta justaposição de planos é enfatizada e
incrementada pelo figurino que contrasta o preto com branco, portanto as cores
dos figurinos nos ajudam perceber a imagem como um espaço tridimensional. Ainda
em relação ao figurino, o personagem Joseph utiliza cores frias e pastéis,
Norma e o mordomo, na maioria das vezes, o preto (fig.6 e 7), que na cultura
ocidental remete ao luto e à morte. Aliás, as cores pastéis de Joseph darão
lugar ao preto quando o objetivo for passar uma ideia de amizade e de romance
entre os dois personagens principais, como na cena de dança (fig.5).
(Fig. 6)
(Fig. 7)
Outro elemento significante
da mise-en-scène é a iluminação. Há o uso de sombras opacas, bem delimitadas,
que convenientemente jogam mais mistério na trama. Em Norma há um intensificado
uso da key-light (fonte de luz chave) em cenas onde ela encarna explicitamente
uma atriz (fig.8). O chiaroscuro, o extremamente discrepante contraste entre o
claro e o escuro, enegrece e dramatiza ainda mais o filme além de enfatizar -
em um determinado momento - a piscina da mansão, que é um elemento importante
da narrativa de Billy Wilder (fig.9).
(Fig.8)
(Fig. 9)
Portanto, o trabalho do
diretor, em Crepúsculo dos Deuses, é bastante complexo, harmônico e retira o
peso do roteiro, que não precisa conter falas expositivas, e da direção, que
não necessita fazer uso de planos inclinados ou incomuns. A presença de um
falecido macaco, que indica a separação de Norma da população humana; o uso de
sutis travellings para frente em momentos de falas importantes; o roteiro de
Salomé, sobre uma mulher que rejeitada por seu grande amor, o mata, servem para
iluminar ainda mais este filme brilhante.