domingo, 8 de setembro de 2013

Crepúsculo dos Deuses (de Billy Wilder)


                                                                                          
Joe Gillis, um roteirista de filmes “B”, possui um probleminha que qualquer ser humano uma vez na vida já teve. Uma dívida. Ele necessita de 290 dólares. Este é seu desejo. Mas após fugir de alguns cobradores do banco e ter o pneu do seu carro furado, por obra do acaso, conhece a desajustada e solitária Norma, atriz do cinema mudo que sonha em voltar às telas do cinema e que detesta o cinema sonoro, suas falas constantes e intrépidas. Ela será tanto aliada e inimiga de Joe. E Joe será o passaporte que levará Norma de volta às câmeras e ao estrelato. Mas, para isto, ela vai ter que matá-lo.

A história, antes de se tornar filme, já está presente na mente do cineasta, que já conhece o destino dos personagens, todos os dramas psicológicos e a importância narrativa dos elementos cênicos. O diretor pode - no intuito de causar suspense, drama, comédia, ou qualquer outra emoção no espectador - guardar ou mesmo liberar precocemente tais informações ao longo do filme. Crepúsculo dos Deuses, do prolífico e oscarizado diretor Billy Wilder, surpreende ao apresentar diversas informações importantes da história - como a morte do nosso protagonista – já nos primeiros minutos da película por meio de um narrador. Joseph irá ser baleado; serão dois tiros, um atravessará suas costas; outro, sua barriga. Ele ainda terá a “sorte” de cair numa piscina. A piscina que sempre desejou. Esta é uma escolha narrativa arriscada que entrega certas reviravoltas importantes do filme, mas, veremos, mais adiante, que foi mais do que apropriada, porque os personagens são mais interessantes do que um simples mistério acerca de um crime, uma história já tantas vezes vista no cinema clássico hollywoodiano.

Em uma narrativa clássica hollywoodiana, geralmente, o fim da trama e o destino final do protagonista são apenas apresentados pelo filme em seu final. É a escolha mais ortodoxa, que pode garantir boas reviravoltas, surpresas e um clima de suspense extraordinário, como em “O Sexto Sentido”, de M. Night Shyamalan – que, em seu final, por meio de um flashback, descobrimos que o personagem interpretado por Bruce Wyllis é - e sempre foi - ao longo do filme, na verdade, um espírito. Aqui em Crepúsculo dos Deuses, contudo, a já citada morte do protagonista é um flashforward explícito que quebra a cadeia causa-efeito tradicional e cronológica da narrativa clássica hollywoodiana. Com isto, a narrativa torna-se ainda mais intrincada e, ao usar um narrador já falecido, enaltece e engrandece as falas dos personagens, que poderiam ser entendidas como comuns ou enfadonhas, caso não fossem palavras vindas de um morto. Portanto, a morte de Joseph (nosso “herói”), além de engrandecer suas observações sobre qualquer elemento cênico da mansão de Norma Desmond, também valoram as ações de todos os outros em cena, que se tornam igualmente suspeitos e trágicos. Uma simples piscina, por exemplo, que é vista como um dos desejos de nosso protagonista, para nós, é uma preocupação constante, porque sabemos que função narrativa ela terá no futuro.

A respeito do assassinato: embora saibamos como Joseph C. Gillis morre, não temos ideia de quem o matou ou por quê. Há apenas a sugestão de que Norma esteja envolvida. Esta sugestão provoca suspense e mistério ao restringir nosso conhecimento acerca de certos dados eminentes (quem matou e por que matou), e, mais, a figura de Norma torna-se mais perigosa e misteriosa. Uma arma nunca é sugerida no primeiro ou segundo ato, este um é outro artifício narrativo necessário, para que nós nos surpreendamos com a presença desta no final do terceiro ato. O filme também utilizará artifícios cinematográficos importantes para construir estes personagens ambíguos, dramáticos e misteriosos. Por já terem conhecimento prévio sobre os traços dos personagens e os caminhos da narrativa, a direção de arte e certas ferramentas da mise-en-scène, como a iluminação, a direção de atores, a direção de arte, podem provocar, a partir daí, nossas emoções, atiçar nossas curiosidades, causar suspense. Embora, mais pontualmente, os movimentos de câmera auxiliem nesta passagem de sentimentos.

No começo da película, por exemplo, a direção é vívida e percorre, por meio de um longo plano-sequência, a rua (Sunset Boulevard) que dá nome ao filme. Com muita movimentação de câmera, este estilo fílmico contrasta com o restante da película, que se baseia mais na mise-en-scène e em composições com moldura (fig.1a) do que em movimentos de câmera suntuosos. O trabalho da direção de arte no cenário; da mise-en-scène na encenação e posicionamento das figuras (personagens ou não) na cena; da iluminação no tratamento das sombras, é fundamental para elevar esta atmosfera de mistério que permeia toda a narrativa. A primeira consegue transformar uma amplíssima casa em um espaço claustrofóbico e aterrorizante (fig.1b). Claustrofóbico, porque mesmo que Norma Desmond não esteja em cena, sua presença é constante em fotos e quadros, que confinam o personagem Joseph ao ambiente. Do estado deplorável da garagem – com paredes descascadas e portas sujas - à piscina, vazia e tomada por ratos; da quadra de tênis, com sua rede danificada e podre, aos galhos que de tão crescidos além do normal estão empinados, todos estes elementos cenográficos refletem o isolamento de Norma e sua incapacidade de cuidar do ambiente, ou seja: de viver fora do estrelato e das câmeras.

Fig. 1a

Fig. 1b

Quanto à mise-en-scène na encenação dos atores, a postura de Norma sentada (fig.1c), quando esta entrega o roteiro de Salomé para Joseph, remete ao expressionismo alemão e ao animalesco. Tanto sua mão, como também, em outro momento do filme, a do mordomo (fig.2), são análogas as de um monstro e assemelham-se aos galhos empinados que proliferam na externas da casa. A maquiagem igualmente casa-se a estes componentes ao embaraçar e ondular os cabelos (fig.3) de Norma. Porém, ainda estamos falando de personagens, mas os objetos também são movidos pela equipe do filme e aqui as estremecidas cortinas (fig.3a) sugerem um clima de mistério já no início da película, as águas balançantes da piscina (fig.3b) refletem a dramaticidade da cena na hora do assassinato. Existem outros momentos sutis como estes ao longo do filme.


(Fig. 1c)

(Fig. 2)

(Fig.3)

(fig.3a)

 
(fig. 3b)

Para lapidar essa aura misteriosa em torno da personagem, no primeiro diálogo entre John e Norman, Billy Wilder usa uma composição com moldura (fig.4), que induz nossos olhos a percorrer a tela em busca de informação, neste caso, a silhueta da misteriosa Norma que está no centro do quadro. Além disto, a mise-en-scène tem um papel fundamental neste primeiro encontro ao criar um distanciamento entre os dois personagens: ele está no térreo junto à piscina; ela no primeiro andar da casa. Esta separação vai ser quebrada aos poucos, os personagens vão cada vez mais se unirem no espaço, culminando numa cena de dança, (fig.5) que indica um principio de amizade entre os dois que vai ser importante no decorrer da trama quando Joseph correr desesperadamente para cuidar de Norma.

(Fig.4)

(Fig.5)

Existe uma interessante alteração de planos durante todo o filme. O mordomo, na maioria das vezes, estará posicionado no segundo plano (mais profundo no campo) (fig. 6), num meio termo, estará Joseph, e Norma em primeiro plano. É uma alteração mutável que por propósitos dramáticos pode variar. No terceiro ato do filme, no qual Joseph descobre que Norma quer separá-lo de Betty, ele decide finalmente tomar controle da situação e isto é dramatizado e expressado pelo diretor com uma sutil alteração de planos (fig. 7). Vale lembrar que, comumente, objetos colocados em primeiro plano transmitem uma ideia de poder e subordinam os demais elementos. Percebemos assim porque se estabeleceu no áudio visual e também na milenar arte pictórica. Esta justaposição de planos é enfatizada e incrementada pelo figurino que contrasta o preto com branco, portanto as cores dos figurinos nos ajudam perceber a imagem como um espaço tridimensional. Ainda em relação ao figurino, o personagem Joseph utiliza cores frias e pastéis, Norma e o mordomo, na maioria das vezes, o preto (fig.6 e 7), que na cultura ocidental remete ao luto e à morte. Aliás, as cores pastéis de Joseph darão lugar ao preto quando o objetivo for passar uma ideia de amizade e de romance entre os dois personagens principais, como na cena de dança (fig.5). 


(Fig. 6)

(Fig. 7)
           
Outro elemento significante da mise-en-scène é a iluminação. Há o uso de sombras opacas, bem delimitadas, que convenientemente jogam mais mistério na trama. Em Norma há um intensificado uso da key-light (fonte de luz chave) em cenas onde ela encarna explicitamente uma atriz (fig.8). O chiaroscuro, o extremamente discrepante contraste entre o claro e o escuro, enegrece e dramatiza ainda mais o filme além de enfatizar - em um determinado momento - a piscina da mansão, que é um elemento importante da narrativa de Billy Wilder (fig.9).

(Fig.8)

(Fig. 9)
           

Portanto, o trabalho do diretor, em Crepúsculo dos Deuses, é bastante complexo, harmônico e retira o peso do roteiro, que não precisa conter falas expositivas, e da direção, que não necessita fazer uso de planos inclinados ou incomuns. A presença de um falecido macaco, que indica a separação de Norma da população humana; o uso de sutis travellings para frente em momentos de falas importantes; o roteiro de Salomé, sobre uma mulher que rejeitada por seu grande amor, o mata, servem para iluminar ainda mais este filme brilhante. 

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