O
documentário clássico, pressionado pelos limites tecnológicos da época, não
conseguia captar o transcorrer dos acontecimentos e, por isto, precisava
construir a encenação, ou seja, determinar a posição, não só do
sujeito-da-câmera (o que filma a cena, o diretor), como também de quem está sendo
filmado, na maioria das vezes, um entrevistado. Na contemporaneidade, este
estilo narrativo ainda se faz presente em documentários exibidos na TV, por exemplo, History Channel e Discovery, canais televisivos que tentam esconder de todas as formas a construção da encenação. Não se engane: tudo visto ali foi encenado, ensaiado,
construído: animais diferentes filmados em tempos distintos, movimentos de câmera pré-produzidos e arquitetados,
perguntas e respostas roteirizadas antes do nascer do filme. Desde a década de
60, portanto, no pós-guerra, um novo estilo de documentário, beneficiado por uma
tecnologia inovadora e mais leve, uma câmera com som acoplado, podia captar
tanto imageticamente quanto sonoramente a ação do cotidiano, abrindo espaço
para uma indeterminação do acontecimento - o inesperado da ação.
Pacific
anda nos dois terrenos estilísticos, e, ao mesmo tempo, discorre atenuada
crítica ao imediatismo contemporâneo, além de problematizar ainda mais a
questão da crença do espectador às imagens. Ao levantar tantas questões, um
casamento inesperado tinha que ocorrer. “O Homem com uma câmera” (1929) e “Pequena
Miss Sunshine” (2006), filmes tematicamente distintos, são surpreendentemente
evocados ao longo de todo o trajeto de Pacific - navio e documentário. Se no
primeiro, o dispositivo cinematográfico (câmera), como também o diretor do
filme, são apresentados e visíveis em cena, portanto, observados pelo
espectador; o segundo tenta, de todas as formas, exaurir o registro da
ficcionalidade e da encanação: não apenas trazendo personagens que nunca se
dirigem para o quadro (ou seja, para o espectador), mas também fazendo uso da
própria montagem, cheias de raccord (sonoros, de movimento), para dar esta
impressão que o ficcional é real.
Do
primeiro filme, evoca-se a busca incessante de Vertov - documentarista e
fundador do grupo Kinoks - pelas ruas de Moscou, por um cinema-verdade, um
retrato real da vida cotidiana, logo, sem cenário, roteiro ou atores, um estilo
não narrativo defendido através de seus raivosos manifestos do começo do século
XIX e que serviriam posteriormente de inspiração para documentaristas de
calibre, como Eduardo Coutinho e mais, eloquentemente, Jean Rouch; do segundo: a
futilidade, o narcisismo e a soberba, presentes em uma competição de beleza
infantil cujas particularidades nefastas foram usadas como alegoria pelo filme
(Pequena Miss Sunshine) com o intuito de criticar a sociedade imediatista americana
como um todo.
A
primeira lembrança pode ser atribuída mais ao diretor do documentário, Marcelo
Pedroso, do que aos pessoas/personagens, passageiros do navio, já que é ele o
detentor dos registros e organizou o que convinha ou não antes de lançar o
filme no circuito nacional. Se no filme de Dziga Vertov, a câmera era
manipulada pelos mais diversos diretores do grupo Kinoks, aqui, a câmera é
flagrada em diversos momentos por meio de espelhos e dirigida pelo próprio
povo.
É neste uso do material fílmico coletado pelo
diretor que torna Pacific extremamente facinante. É como se um Vertov, em pleno
Recife, dividido entre apagar a feitura (construção da encenação) do filme - já
que em nenhum momento da projeção o processo de montagem feito pela equipe de
Marcelo Pedroso é mostrado - e captar o real, entregasse sua câmera ao objeto
(pessoa/personagem) fílmico e saísse de cena.
O
filmado impacta tanto tematicamente como estilisticamente. O último, devido à composição
cinematográfica até surpreendente, com técnicas fotográficas (regra dos três
terços), planos gerais, médios e close-up, moderadamente bem realizadas. Durando
alguns segundos, uma emblemática cena de um pé centralizado no quadro com uma
luz suave do pôr do sol fazendo papel de contraluz (luz que atinge o objeto
filmado por trás e contrário ao campo de visão da câmera) é contemplativa
(remete ao A Árvore da Vida, de Terrence Malick) e torna-se um verdadeiro
momento de descanso para o espectador que, em grande parte da projeção, é
atacado por sons da equipe de diversão do cruzeiro, que tentam incansavelmente
alegrar os turistas.
Aliás,
por serem incapazes de oferecer momentos lúdicos atraentes e muito em razão dos
avanços obtidos pela economia brasileira no governo Lula, pela figura de uma
pessoa/personagem feminina, observa-se um verdadeiro embate entre uma classe C
financeiramente mais robusta, detentora de mais recursos, contestadora, e o atendimento
dos donos dos meios de produção, neste caso, a equipe do cruzeiro. Ela
esbraveja contra a organização do cruzeiro, reclama da comida e da piscina seca
do navio.
Fora
esta passageira, os outros parecem realmente felizes e se deleitam com o que a
viagem tem a oferecer. E é aí que as lembranças de Pequena Miss Sunshine,
citadas no epílogo deste texto, aparecem. Incomoda o fato de estarmos
testemunhando alegrias tão efêmeras, americanizadas, muitas vezes narcísicas,
ainda que transmitam uma beleza singela, alívio cômico e certo conforto.
Sensibiliza-nos por serem atitudes humanas, benévolas. Atormentam por observarem
felicidade com muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender.
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